8 de setembro de 2018

Luz das Trevas

    Lembro que lá na infância, em temporadas de chuvas, ventos alarmantes ameaçavam nossa casa a arrancar nosso telhado. Eram grandes vendavais, tempestades caóticas e de granizos, então nos dividíamos em grupos: os que riam da chuva e os que se preocupavam com a chuva.
    Meus pais corriam para ajudar a fechar as janelas e venezianas, a colar panos por de baixo das portas, se esconder na sala, apavorados com os relâmpagos. Imaginavam o pior, o destelhamento e a morte por pedras. As paredes choravam, a sensação era a do fim.
    Já eu e meus irmãos, às vezes até o meu pai, nos dirigíamos para a varanda como se fossemos passear. Olhávamos atentos ao desespero da natureza. Com os pés molhados, sorriamos para a fatalidade. Aplaudíamos o show e a orquestra dos ventos. Barulhos cósmicos entre pontas e blocos, estalos de cimentos e vigas, latas e postes gritando, arvores e carros rasgando o espaço e o espaço grunhindo desespero.
    Adorávamos os pulos das folhas pela a mesa, as cambalhotas dos galhos e da chuva, os bônus do pipocar dos fios nos postes. A água refrescava nosso rosto, gelada como muitos corações. Havia uma cumplicidade com o céu violento, pois os raios não assustavam, mas iluminavam nossas faces cômicas e debochadas de ansiedade feliz pelo espetáculo nervoso da natureza. Ríamos de nossa coragem, enquanto os familiares gritavam em desespero para que a gente entrasse logo, que parasse com aquela brincadeira estúpida.
    O amor é assim. Há quem teme a chuva ou quem se joga para vê-la na sacada. Não adianta tentar ensinar alguém a amar o furacão. Não adianta fazer quem gosta de participar das trovoadas se recolher para da sua casa. Como diz o grande poeta Fabricio Carpinejar: “Os opostos não se atraem. Os opostos disputam quem tem razão”.
    Eu e ela somos assim, diferentes em tudo, mas iguais no que mais importa: a coragem. Não daria certo nos juntar se um fosse travado e o outro intenso, aquele que pretende controlar os fatos e o que pretende inventar algo muito mais além. Um irá parar de repente, e o outro irá acreditar na companhia para o espetáculo. Não haverá companhia. Não haverá espetáculo. Haverá nada.
    Poderei desejar carregá-la que ela cansará do mesmo jeito. Ela poderá querer explicar que não é necessário ter medo, que não acreditarei. Enquanto um exclamar “venha brincar na chuva” o outro se trancará no quarto esperando que a desgraça passe.
    Quem quer estar junto ou correrá junto ou sentarão para a morte e nenhum dos dois se sentirá desacompanhado. Quem quer estar junto terá pressa, terá fúria, como num desastre será ou amar ou perder, será ou arriscar no sucesso ou aceitar o fracasso, juntos tendo o mesmo gosto pelo imprevisto, o mesmo susto de ser.
    A luz das trevas iluminam os corajosos.

A Busca pela Verdade

     A como seria bom viver tão somente pela graça. Como seria bom viver com dignidade por apenas seguir um conjuntinho de regras. Mas não é tão simples assim. A graça não existe sozinha. Ao lado dela a natureza atua e atua forte. Não deixa espaço para contradições. Não permite dúvidas, especulações, fantasias. A natureza agradece quando você morre. A natureza está ao seu lado quando você desiste. Ela apaga você do mapa. Mas ela não te exclui, você virá pó, você virá ar, você virá inseto, você virá água, você virá pedra, você virá qualquer coisa mas para você voltar a ser você haverá antes um conglomerado de fatores temporais absurdamente complexo a formar uma nova chance no infinito. Complicado porque a graça é linda em sociedade. É lindo ajudar e ser ajudado. É maravilhoso perdoar e ser perdoado. É sublime dar e receber. Então não aconselho descartar a ciência, mas sempre considerar que no fim todos estarão lutando pela sobrevivência.

Convidado não Convida

   Tenho uma preferência curiosa quando começo a escrever: penso num título e depois desenvolvo o enredo. E isso vale para tudo. Pensar no fim, e ir aos poucos planejando o desfecho. Pensar no inicio e com calma desenhar trechos do caminho. Pensar na janta enquanto queimo o almoço. Pensar na carreira me qualificando com outra coisa. Enfim, pela conclusão que chegamos à introdução. Há quem fuça toda a vida para chegar em um lugar, enquanto poderia fuçar qualquer lugar para chegar a uma vida. Há quem acorda querendo dormir. Há quem dorme querendo acordar. Há quem morre para depois sobreviver.

   O outro lado parece ser amar todas as coisas. Aceitar o tempo, seja ele curto ou infinito. Chegar no meio termo com freio, com fôlego, com sangue e dignidade. Narrar todo um contexto e num momento qualquer corrigir todos os pontos. Não há paciência para revisão. Queremos acertar sempre. Buscamos ter certeza, pois a dúvida incomoda. Quando somos convidados e convidamos alguém, o que queremos são garantias de que nada irá constranger. Desejamos prestígios quase que como buscamos seguranças. O desconhecido nos assombra. Toda novidade apavora. O que não é inveja é ciúmes. A vida poderia ser um texto, e o título um final. A vida poderia ser um convite, e a morte uma festa. Mas o convite que é a morte, é só nosso, de mais ninguém. Sinta-se a vontade, apesar da solidão, a festa é única.

Manchas no Rosto

     Quando mal encaminhadas, algumas das cartas dos presos param aqui. Fico encarregado de descobrir o destinatário correto e para tanto, nessa fase do processo, só analisando o conteúdo dos pedidos. A agonia é clássica. Se eu pudesse, não trabalharia. Se eu pudesse não faria sexo. Se eu pudesse não comeria. Se eu pudesse viveria entre dormir e despertar. A preguiça também é um direito. Se eu pudesse me acomodaria com temporadas, algumas em casa, outras na rua. Se eu pudesse faria como meus avós, mandaria todo mundo tomar no cu ou como meu amigo peidaria na frente dos inconveniente como protesto. Se eu pudesse não deixaria de ter a ingenuidade de uma criança. Se eu pudesse não me submeteria a competir como os adultos. Seu pudesse me alimentaria com sol, pois assim foram nossos antepassados. Mas não posso. Já estou preso aos próprios problemas que criei. Estou confinado a minha própria vaidade. Já sou dependente do medo e do futuro. Sou o que nenhum preso deseja ser, ganancioso. Pois querer felicidade não é igual a querer ser livre. Felicidade na verdade é só um detalhe mesquinho dos nossos impulsos primitivos. Diante da dor de uma doença só queremos a cura. Diante da fome insuportável só queremos o que tiver a disposição para comer. Diante do sequestro só queremos a liberdade. Diante da culpa só queremos o perdão. Mas diante da raiva, alguns não pensarão em paz, mas em vingança. Diante da vergonha só queremos compreensão. Mas diante da humilhação, alguns devido seu orgulho se sentirão feridos, mas não tranquilos com sua realidade. Diante do fracasso só queremos o consolo. Diante da derrota, alguns não desistirão, e outros além de não desistir farão o que for necessário para vencer. Se eu pudesse ficaria a mercê de donativos voluntários. Se eu pudesse levaria uma vida social de inúmeras solidariedades. Se eu pudesse criaria laços, construiria associações, uniria pessoas com fins de criar estímulos ao bem comum. Mas não posso. Tudo parece criado por um complexo de acontecimentos históricos que segue e ultrapassa fronteiras com rumo a excelência individual das pessoas. As personalidades somadas nos trouxeram aqui. Para mudar tudo seria necessário começar tudo outra vez. Seu pudesse jamais faria tudo o que fiz no passado. Semelhantes as descritas nas cartas, se eu pudesse voltar a trás me tornaria um homem calado e imperceptível, pois nem as manchas do meu rosto me incomodaria depois de tudo o que passei. Vivemos diariamente um caos e quando tudo fica calmo não percebemos a diferença, exigimos mais do que merecemos e voltamos novamente para prisão das nossas ambições.
      Pela longevidade parece necessário se esforçar sempre pelo mais difícil. A preguiça e a ansiedade nos faz acreditar que a ambição pelo mais fácil pode ser controlada, mas não. Não existe controle. Não existe equilíbrio. Não existe moderação. Se fazemos algo que destrói, simplesmente destrói. Se fazemos algo que não agrega, não agrega. Se fazemos algo que é fácil, é fácil, e os dias vividos não voltam.

Sórdida Eternidade

     O mapa é o coração. Os caminhos, marcados pela história, quebram entre rios e lagos, às lágrimas do planeta. Entre a vida e a morte os laços e fios que tecem nossa existência revelam a incontrolável situação de existir. Viver começa ficar fácil no ponto mais absurdo ou cômico da existência. Tão fácil a ponto de nos impormos referências do que vale ou não investir, se vale ou não continuar. A vida começa a parecer meramente um jogo de escolhas, de opções, de interesses. Você a sente quando você finalmente decide dançar sem hora, sem motivo. Você a sente quando compreende seus pais, quando respeita os mais velhos. Você a sente quando acorda dos seus sonhos vivo, embora a certeza absoluta de ter explodido no tempo. Você a sente quando sente que machucou alguém, que perdoou alguém, que deu abraços sentindo enorme saudade. Você começa a viver quando percebe que não sabe quando nasceu e desconfia se um dia morrerá. Você sabe que vive quando você tem trocados para dar ao pedinte, mas entre as janelas dos olhos, as camadas de vidro e os papéis da esmola você pensa no futuro das coisas. As fotográficas de uma noite molhada e as reflexas da vida marginal giram em sua mente o colocando em consciência reciproca com a miséria do mundo. Você percebe que vive quando os fatos se repetem cada vez menos enigmáticos, porém ainda mais sórdidos. Você descobre que vive quando desconfia que morra. Guimarães Rosa já dizia que “a gente morre é para provar que viveu”. Eu reforço dizendo que a gente vive é para provar que não morre. Morre quem desisti, mas o problema é que no fundo sempre queremos recomeçar, então não haveria morte, mas eternidade e a alma seria perene nesse desasseado mistério de existir.

A Religião do Inconciente

    Andei reparando numa coisa que meu pai me disse dias atrás: quase nunca fazemos algo para o outro, mas para nos sentirmos bem. Analisei muito o conteúdo dessa frase e rodando em meus pensamentos, perplexo diante da realidade, vasculhei as mais profundas lembranças e histórias da minha vida e nada tão significativo encontrei sobre algo que fiz para alguém sem que fosse pensando em algo que viesse a me retornar como mérito de minhas ações. 

    Claro que pensar em tudo isso só poderia me levar a uma única personalidade exemplo de doação e amor ao próximo que foi Jesus Cristo. Estudei novamente os evangelhos, para novamente concluir o quanto há em mim para mudar, se essa for mesmo a intenção. Jesus foi um cara inalcançável no tocante a paz e no que diz respeito a caridade. Acho pouco provável seguirmos a risca seus exemplos, pois fazer tudo pelos outros me parece ser algo como não viver para si. Seria não sentir prazeres. Seria não trocar, seria não competir, mas ter o poder e a glória para provar os ensinamentos e fazer acontecer os milagres. 

    Nosso caso é bem diferente. Não temos poder nem sobre nós mesmos. Não conseguimos ser obedientes nem aos nossos sentidos. Nossa intuição é por várias vezes desconsiderada. Temos vergonha. Temos orgulho. Temos inveja. Confundimos amor com posse. Confundimos raiva com medo. Confundimos dor com desejo, e inconscientemente praticamos nosso próprio suicídio. Nossa arte é exibicionista. Nossa doação é justificada. Nosso trabalho é por dinheiro. Nosso esporte é competitivo. Nossas conversas são políticas e intransigentes. Nossas paixões são para nosso próprio bem estar. Nossa vontade por si é sempre própria.

    O perfume e o chocolate dados a ela, na verdade são para mostrar que somos capazes e receber em troca o devido reconhecimento. O socorro é recíproco, por se colocar no lugar e não querer se ver também assim. Olhamos no outro e a dor que percebemos é a dor da nossa realidade, nos preocupamos primeiro conosco. Refletimos o que somos e ao enxergar ficamos com medo, ao enxergar pensamos na morte ou no amanhã. Tentamos salvar a família, os filhos, os avós pois é sinistra a ideia de viver só ou desamparado. Fazemos viagens, organizamos confraternizações, participamos dos happy hours, tudo por uma única razão: a solidão existe. 

    O futuro nos incomoda, nos afugenta. Fazemos as coisas por receio de um dia sermos esquecidos ou desvalorizados. A esmola é a contribuição para o bom senso da nossa consciência. O perdão é a esmola da nossa bondade. A pura bondade é a maior preguiça da alma. Amamos para sermos amados, isso vale para tudo. Ora, se nada é para o outro, porque sermos hipócritas? Por que a hipocrisia é a religião do inconsciente. Lá, a fé e a culpa são a mesma coisa.

    Viva o amor pelo próximo.

Patins em São Paulo

        Hoje bateu saudade daquele role responsa no centro de São Paulo. As elites do corpo físico hibernaram em prol de alguma evolução pessoal. Abandonaram as ruas e seus perigos para apostar no tédio do equilíbrio. Esquecerem a guerra e se acomodaram com a solidão ou ganharam com a sorte o sucesso de um grande amor.