20 de abril de 2017

Luz

      Levei quase três anos para apagar todas as nossas conversas. Levei quase três anos para excluir seu contato da minha agenda. Levei tempo demais para deixar de pensar em formas e oportunidades de te ver ao invés de aceitar que o fim não vinha só da suas palavras bruscas, mas dos caminhos por você trilhados muito antes deu finalmente me tocar. Como pude permanecer caído por tanto tempo assim no meu próprio engano, na própria ilusão que criei a respeito das vontades de um corpo que não era o meu. Como pude somente agora me envergonhar das ligações inoportunas em plena madrugada. Como pude achar que tinha esse direito longe de ser formidável, mas completamente inconveniente. Como pude me convencer de que só por que eu sentia falta ela também deveria sentir. Que talvez só me respondesse por carinho e consentimento. Acho que não foram erros, não foram fraquezas, não foram recaídas, é provável que na verdade eu estivesse doente, preso num quarto escuro, imaginando ela também dentro sempre disponível. Que grande absurdo no amor irmos tantas vezes trás de quem nunca mais nos procurou. Que absurdo no amor se convencer de que pelo menos o sexo é garantido com quem já se indispôs bem antes da gente se quer cogitar. Que absurdo achar que insistir é o segredo do sucesso, que a boa lábia é a chave do castelo. A mulher não tem fechadura, ou ela abre por você merecer ou você arromba por ser um patife. A mulher é quem te convida, quem te da o sinal de agir, é também a que quando diz que acabou, acabou. Tudo bem de que sentirá saudade, tudo bem de que irá gostar do reencontro, tudo bem de que irá esperar por um contato, mas não significa que a vida não tenha seguido. O nosso desespero por descobrir que ela transou com outro é o fim da nossa própria capacidade de ser criativo, de ser independente, de ser livre. Se amargurar por saber que outro come uma boceta que antes só você comia, mas depois da separação o que parecia seu nunca foi. Deu para você por que quis, não por que você foi persistente: pré-requisito muito específico, às vezes deselegante. Deu para você porque você era o que tinha, era o melhor ali no momento, o que não impede ou nunca a impediu de desejar diferenciar, esquecer, variar, principalmente depois de ter premeditado o fim, principalmente depois de ter deixado claro o rompimento. Por mais agoniante que pareça, o descaso e a falta de questão nunca deveriam ser os motivos da nossa loucura, mas sim da nossa vitória. Perceber que não somos mais a prioridade do prazer é acender o abajur em meio a escuridão. Reconhecer que o passado existe mas apodrece é encontrar os óculos depois da luz. O amor é alucinante, mas nada melhor que as janelas todas abertas.

Um conceito para o céu

        Quando olho para o céu lembro das minhas amizades de infância. Todos os finais das aulas de educação física eu me deitava exausto na quadra e olhava para o céu. Sempre que saia de bicicleta com meus amigos para os parques, ao chegar exausto, deitava no gramado e olhava para o céu. Finais de semana quando encontrava meus amigos para conversar na praça deitava-me tranquilo e olhava para o céu. Quando brincávamos na vila de casa, costumava me jogar no chão da rua e paralisado olhar para o céu. A minha vida e a vida dos meus amigos mudaram, mas o céu continua idêntico aquela época. Mas o céu não é apenas saudade, o céu não é apenas lembrança, o céu também é aprendizado. Engraçado que hoje sempre quando me jogo no chão e olho para lá vejo tudo escuro. Quando estou entre amigos e olho para cima é sempre noite, sem nenhuma estrela. Sempre tarde, sempre rápido, sempre arriscado. Sempre perto do fim. Sempre quase na hora de voltar. Sempre afobado pela urgência de alguém. Sempre próximo da presa de dormir. 
         Esses dias estava jogando futebol a noite com alguns amigos do trabalho e um deles me desafiou. Um garotinho desconhecido me provocou em jogo e estressado eu o apavorei. Esse amigo repreendeu-me dizendo que só gritava com jogadores mais novos. Respondi que gritaria com qualquer um, que me alteraria independente do tamanho. Quis dizer a ele que não era pela idade, mas sim pela ofensa. Quis dizer a ele que na condição de meu amigo muito lhe faltava para me compreender. Falar em dar exemplo é fácil para quem já está com a vida ganha. Quis dizer a ele que não era certo como meu amigo me subestimar. O clima do jogo ficou péssimo, tanto que nem bebemos cerveja juntos nesse dia que era tradição depois dos jogos. Fui para casa olhando para o céu. Admito que agi errado em relação a superioridade que impus ao menor mais vulnerável. Mas a questão ultrapassou o que entendemos como respeito, o que entendemos como consideração, o que entendemos como ser importante, ser querido, isso já era superado muito antes do desentendimento. Já não se importava muito com a relação amigável e o grito com o garoto foi apenas um pretexto, uma gota que transbordou o copo. Depois de uma semana fui procurado. Fui questionado porquê do sumiço. Disseram até que sem mim aquele futebol não teria mais futuro. Refleti muito sobre o valor que deveria dar por tudo o que estava acontecendo, ponderar para que qualquer atitude minha não se saísse como ingratidão. O que me restou foi olhar para cima e me orgulhar por continuar menino. O menino desesperado que não espera o outro dia para se desculpar. Que chama todos os mais velhos de senhor. Que amigo não é só a noite, mas o dia todo. O menino que até hoje não sabe o que significa política. Que acorda cedo, bate na porta e chama para brincar. Deveríamos continuar por toda a vida aquela criança que não só era carente, mas que se imaginava voando com seus melhores amigos.

Par de Equações

      Acha que ninguém sabe o que pensa? Acha que o que pensa ainda é refúgio dos seus pecados. Acha que pode pensar à vontade e que só você terá acesso. Você e alguém de sua preferência. Alguém que desejará compartilhar como desabafo ou pedido de socorro: não é bem assim! Suas informações não estão tão seguras como imagina. Seus segredos, seu macabro passado, suas vergonhas, seus medos, suas mágoas, seu ódio, até o que nem você explica por que sente, até o que nem você sabia que sentia. Os maiores mistérios da sua lógica de pensar não são tão sigilosos assim. Não por que existe um místico capaz de desvendar. Não por que há um cigano hábil suficiente para adivinhar. Não por conta dos horóscopos​. Nem pelas cartomantes. Nem pelas feitiçarias. Nem pela transcendência, nem pela espiritualidade, não há palhaçada nessa história. Não há conto de fadas. Não há religião. Não há dúvidas. O que definitivamente existem são fatos. Fatos diários registrados sobre sua vida. Lendo este texto, curtindo ou não, um programa calcula o tempo que ficou parado e analisa se por acaso houve a leitura. Isso evidência que a tecnologia é tão eficiente que não demanda de extrema interação para te interpretar. Se você sem experiência pensar agora em cometer um crime, provável que irá pesquisar coisas relacionadas na rede, onde sua navegação ficará registrada. Todos os dias nos denunciamos. Todos os dias revelamos não só quem somos mas quem podemos nos transformar. Somos uma equação que tenta resolver outras. O nosso esforço cotidiano catalogado, assimilado, está numa estrutura de respostas associadas aos nossos anseios, aos nossos maiores anseios. Todas as nossas perguntas feitas na busca de como lidar num relacionamento e todas as nossas mensagens enviadas a pessoas que buscávamos ajuda quanto ao que fazer sob o sentimento de amor estão desenhadas num mapa de vida, que mostra os caminhos do que é mentira, do que é verdade, do que é puro drama ou euforia. Sua falta de caráter quem sabe não esteja do seu lado esquerdo. O sucesso com sua companhia depende de outra equação. Quem criou os aplicativos que você usa talvez consiga resolver esse sistema, depois, como um demônio, deitar e rolar de rir da sua cara.

Perdão do Diabo

      O movimento feminista até hoje é martirizado por ser transformador, por ser diferente, por ser libertário. As feministas até hoje são estereotipadas como as solteironas, a estranha, as feias, as que ninguém quer, logo, são as que reivindicam o que não conseguem, mesmo indo ao limite, competir. Essa hostilidade é ampla demais, foge de questões políticas de direito e igualdade e também invade outros campos da psicologia e da nossa saúde geral. Falo de você que é criticado por está velho e ainda solteiro. Falo de você que por ser gay é julgado como sem perspectiva de criar laços familiares nem sucessores. Falo de você que já se casou e se separou inúmeras vezes, agora se sente péssimo com tantas difamações proveniente principalmente das novas pretensões. Falo de você que decidiu sumir, viajar, conhecer outras culturas, explorar por oportunidades, arriscar se aventurando e quando no fim tudo falhou, foi humilhado e não compreendido por aqueles que um dia disseram te amar. Falo de você que tem filhos de outros relacionamentos, mais filhos do relacionamento atual e nunca consegue por conta disso escapar das indignações que os outros descarregam sobre você todas as festas e encontros. É sempre assim quando não seguimos os padrões, quando não obedecemos as regras, quando não respeitamos os costumes, quando deixamos de ser tradicionais. É sempre assim até mesmo quando não foi por nossa própria vontade, às vezes apenas o tempo passou e não percebemos, distraídos com algo da vida, não nos atentamos. Às vezes foi o estudo, o trabalho, as pressões econômicas e as ambições por sucesso que nós prendeu num objetivo pelo qual superou qualquer tradição. Às vezes não tivemos sorte e por acidente nos envolvemos com alguém que não nos proporcionou continua alegria, mas com espaço e opções decidimos trocar ou seguirmos sozinhos. Às vezes por conta de um simples hobby, ou um simples entretenimento, ou uma forte consciência em saber esperar foi o que nos manteve só sem perceber. O que acontece é que até hoje, uma hora ou outra, ouvimos de amigos ou de familiares e até de quem se quer nos conhece ironias e deboches quanto a nossas escolhas não conferiram idênticas ou semelhantes as da maioria. Óbvio que por causa desses estigmas nos sentiremos em algum momento culpados, correndo o risco de aceitar as agressões como forma de castigo: que jamais deveria acontecer. Esse estado livre de seguir sem perceber, sendo aquilo que desejávamos ser é exatamente a nossa redenção. A liberdade tem seus problemas como qualquer vantagem tem suas desvantagens, mas a liberdade é a única coisa que mais nos proporciona experiências e nos amadurece em relação as coisas novas. No momento em que optamos por algo que nos interessou em detrimento de algo que nos era forcado, avaliamos os resultados e os benefícios de nossas certezas. Quando repararmos nos outros e percebermos que estamos melhor, será a hora em que finalmente aprendemos não só a nós perdoar, mas a reconhecer que graças aos nossos pecados é que conquistaremos a salvação.

Rebeldia de Deus

       Estava tudo tão calmo. Era um dia normal. Nada indicava chuva, nada demonstrava eventualidades como calor intenso ou ventos fortes. A época de frio estava distante e o ambiente por ser tropical a possibilidade de nevar era remota. A possibilidade de tremer era improvável. O clima estável naturalmente comunicava a todos seu espírito de paz. O Reino subterrâneo, influenciado pelos hormônios de sua líder, funcionava de forma estreitamente organizada. Um quartel-general e uma excelente torre de vigia cuidavam da segurança do local. Soltados, machos, operários, escravos, jardineiros e escavadores se dividiam em castas, cruzavam-se pelos labirintos de cuspe, se alimentando nos jardins de fungos e assim sobreviviam equilibradamente. Mas um castigo do nada caiu. Tudo de repente se estremeceu e o que era lindo se desmoronou. Uma obra complicada, que exigiu muito trabalho, desaba em suas próprias cabeças, matando centenas de criaturas honradas, que agora afundam nas ruínas do próprio sucesso. Eram pequenos e inofensivos seres vivos em seu mundo modesto, pouco a pouco procriavam, se desenvolviam e com extrema cautela exploravam cada vez mais o infinito daquele quintal. O solo era fértil, o chão era árido, granulado, infestado por outras criaturas famintas, predadoras, amedrontadas, talvez sem entender bem quem são, de onde vieram e para onde vão. Somente caminham a procura ou a serem procurados. Os instintos falham bem como nossa criatividade. Frente ao desespero, as intensões são boas. Como adivinhar a forma, a data, a hora de uma tragédia? Como prever nossas desgraças, desgraças impostas, fortuitas a nossa vontade. Como escapar daquela pedra enorme rolando em sua direção e ao conseguir, ver por entre os escombros ossos partidos e gosma escorrendo. São vários gemidos de dor, pedidos de socorro, súplicas por um fim da devassidão. Era impossível deles lá de cima ouvirem. Gigantes e travessos, corriam pela grama esmagando um universo. Incapazes de perceber o massacre, incapazes de escutar os gritos, incapazes de sentirem o sofrimento. Corpos sendo destroçados, outros arremessados para longas distâncias, sem pudor, sem clemência, sem empatia. A ingênua crueldade parecia não ter fim. Os passos eram contínuos, um pesadelo que não terminava. Magnitude incomensurável, barbaridade desproporcional, impossível de se conceber. Quando a força parou, restava apenas jogar os mortos num aterro, reconstruir o lar e voltar a viver se apoiando em esperanças.

Treino de queda

Todas as primeiras vezes são traumáticas. Exemplo é quando somos informados sobre a paternidade ou quando nos levam bens em decorrência de assalto a mão armada. Isso se dá geralmente pela ilusão de que como nunca aconteceu, talvez nunca acontecerá. Vejo pessoas encherem o peito pra falar que nunca foram roubadas em São Paulo, insinuando que o ato só ocorre àqueles mais despreparados ou desatentos. Vejo amigos comentarem sobre as noitadas, que prevenção é necessário apenas àqueles que não sabem avaliar suas pretendentes e para quem sabe, como eles, se exaltar pela qualidade de perito entre o mulheril. Quando de repente chega a notícia. Quando de repente vem a surpresa. Quando de repente o azar se fantasia de desgraça. Vai chorar e se arrepender. Vai dizer que ainda tinha sido avisado. Vai procurar uma palavra amiga, um consolo, um abraço. Passamos por isso no amor. Nas fases em que estamos com a perfeita auto estima, pisamos em corações como se juntos formassem um tapete vermelho. Por capricho, destruímos esperanças. As variedades e oportunidades engordam nossa certeza de que outro amor nunca faltará. De que ao certo não é bem amor que demandamos. Ao certo é que não sabemos. Aproveitamos as chances da impossibilidade. Em quando tiver vamos gastando. Em quando nada acontecer não percebemos. Geramos sofrimento pelo descaminho, às vezes pela pura ingenuidade, às vezes pela pura falta de caráter. Mas, de repente, sempre de repente, haverá mais ninguém depois do último relacionamento. O celular não vibrará e as sextas-feiras tomaram o lugar vermelho no calendário. A primeira reação será lembrar do passado, será recuperar o carinho, será reconquistar a atenção e ainda assim nada estará pedido. As possibilidades serão duas: ou chorar ou engolir o choro.

A Noite do Sol

     No máximo criaremos uma definição profundamente íntima com base em sentimentos que tivemos pelos outros no decorrer da vida. Teremos em breve uma referência pessoal clara sobre o amor. Nossas próprias experiências nos trará significado e transformaremos isso em convicção, em expectativa. Convicção do que é amor: se é encanto, se é trauma. Expectativa do amor: se é prazer, se é desgosto. Mas e se o amor fosse apartado de nossa matéria, vendo de longe ele como substância e saber que não fará mais parte da nossa composição fraca, inerente até então sobre a nossa forma de agir e de pensar. Se pudéssemos olhar o amor sem se influenciar pela inveja, sem babar, possivelmente compreensivo, observando pelo todo. Entender perfeitamente os fenômenos que não reagem, os olhos explicam onde o toque torna-se fútil, como a boca quando chupa fora do tempo. Quando tudo é um sinal, um convite, quando tudo conspira, até as unhas confundem. Quando temos certeza que enlouquecemos, mas no fundo estamos no caminho, sendo bom o ruim, certo ou errado, é um caminho. Alguém , sempre, estará ao nosso lado, ou próximo, tentando pouco, ou insistindo muito para que mudemos nosso rumo. Podemos julgar como amor? Como ciúmes? Como cobiça? Ou que estamos de fato ficando loucos? Que as roupas não são gibis, que o perfume não é só para os perdedores, porque melhor que o cheiro é o sabor. Melhor que suspirar é lamber. Melhor que mentir não é nem contar a verdade, é fazer a verdade. Quando dá vontade de ser , de enfrentar , não pra se mostrar , mas pra viver até o fim, até onde ninguém viveu o bastante pra voltar, e assim como todos um dia, ir conhecer o que ninguém sabe, pois será, até o momento, o maior desafio, a maior prova de amor que ninguém teve por ti, só você é quem seria capaz , já que não sabemos o que é, a última forma de tentar definir o que tão pouco importa na real das vontades, nem se pode saber de verdade, porque tudo indica sempre que não haverá sucesso tão rápido , talvez tão rápido quanto a vida. Não é curiosidade de sedentário, é consciente acelerar, antever sem planejar. Descobrir que é possível pensar no que ninguém poderia, no inédito, e desenvolver a linguagem, mas se frustrar por também perceber que todos pensam bem antes que você, que não é novidade o campo do qual você normalmente agora contente corre. Está além de fazer uma mulher gozar, está além de fazer o homem se excitar na sua pior condição. Está além de sentir orgulho por enganar, não rola, não é mérito, mas também não é legal posar de íntegro só por ser virtude. Está além de sorrir com as sobrancelhas, está além, muito além de falar, de ser criativo, de improvisar, de ser sincero, de contar a mais pura verdade achando fazer algo legal. Não é só se afastar depois de tanto procurar. O amor pode ser tantas coisas, desde coisas que podemos inventar até coisas que podemos no máximo imaginar e, quem sabe, estar profundamente correto.

        Não muito diferente dos momentos em que estamos recheados por problemas, as oportunidades repentinas de sermos felizes​ nos torturam por exigir que tomemos decisões rápidas, que quando não são nossos braços e pernas, é nossa moral que não acompanha a velocidade das surpresas e os encantos dos mistérios. Confundimos paz com tristeza depois do desgaste e da cobrança. Preferimos nos isolar, desaparecer e procurar se reorganizar para que tudo finalmente volte ao normal da solidão. Até para aqueles que odeiam viver sozinhos, está aí uma ocasião depressiva, de se autossabotar, livrando-se da culpa por sozinho conseguir entender os problemas. Diante da felicidade somos desafiados a fazer o insustentável. Você estará num quarto com várias mulheres dispostas a transar, mas por algum motivo, embora toda a situação tenha sido fruto de alguma fantasia sua, não conseguir dá conta de nenhuma, se desestimular ao vê-las competindo entre si, não querer ofender essa ou privilegiar aquela em prejuízo de outra ou da harmonia que se gostaria de ter com todas. Mas suas ponderações e carinho ali infelizmente não são consideradas e você acaba sendo zombado pela fragilidade ou criticado pela impotência. De repente, ficamos ricos, detentores de uma enorme quantidade de bens e recursos financeiros, mas não demora muito para sermos assaltados e postos pela ingenuidade a beira do sufoco, o desespero de ser ameaçado, de ser coagido e ter a vida em jogo por conta daquilo que tanto desejou. Ser obrigado a se proteger, a vigiar, a não dormir, rodeado por sensores e sirenes, câmeras e vigias, precisando se afastar do bairro, precisando usar óculos escuros, usar bonés aba curva, blindar o carro, contratar seguros, quanto antes melhor. Pequenos detalhes, comer demais numa festa, aproveitando do sabor e da fartura, para mais tarde inevitavelmente passar mal, ou na roda de amigos se drogar, atingindo o ápice da criatividade e do bem estar, para mais tarde se quer lembrar das inimizades que provocou, dos estranhamentos, dos bens perdidos, do reencontro consigo mesmo, refletindo amargamente os resultados do excesso de euforia. Aprender a lidar com a solidão é conquistar o diploma do cursinho preparatório para felicidade.

Desgosto Selvagem

      Pedi para ela não se depilar. Pedi para ela não se maquiar. Pedi para não se pentear. Mas só se ela quisesse, nem que fosse para experimentar, eu pedi. Pedi também que não fizessem as unhas, que não lixasse os pés, que só tomasse banho sem passar perfume, que fosse ela aquela não dos fins de semana, mas dos meios da semana, que fosse ela aquela não ao meio dia, mas a do dia todo, que fosse ela não a comprometida do shopping, mas a solteira na padaria, não queria salto, poderia ser chinelo, não queria cheiro, poderia ser odor, não queria liso, poderia ser áspero, não queria macio, poderia ser duro, poderia ser seco, poderia ser natural, eu não queria batom, poderia ser o brilho do cuspe. Respondeu que ficaria estranha, algo como das cavernas. Então a encarei ainda mais curioso, fiquei ainda mais instigado. Imaginei ela pelada no mato, assustada, selvagem, no cio, pronta para acasalar. Fêmea devassa, feroz, no seu estado fisiológico cíclico mais intenso. Uma mamífera maravilhosa, toda alterada, preparada e favorável à fecundação. Não seria algo a ser controlado, a ser discutido, a ser ponderado, a precisar de acessórios, a ser enfeitado, seria só vontade de dar, seria só vontade de comer, de um jeito real, sem tempero para desfaçar as vergonhas. Quando ela chegou, reparei nas unhas enormes, mas sem tinta, e de minissaia, notei a perna peluda, por isso mais grossa. Estava volumosa, cheia, com carinha de sedenta e talvez refletindo: se ele me comer assim vou gozar várias vezes. Talvez estivesse ansiosa, desesperada para ver se aquilo era verdade, embora estivesse se achando esquisita, quando sentiu minhas mãos sobre sua pele e minha língua chupando seus cabelos, percebeu que não era fetiche, mas admiração, percebeu que não era ilusão, mas real, percebeu que não era curiosidade, mas prazer. Olhava-me com satisfação, empolgada dominou meu corpo, não quis sair da posição, descontrolada foi arrasando as mobílias, mudando os objetos de lugar. Parou por que o joelho estava ardendo devido o atrito, ficou arreganhada na cama, com a calcinha de lado, teve uma surpresa, eu não aguentei. Numa outra vez que nós vimos, tomei um susto, estava toda produzida. Foi aí que suspeitei por que mulher raramente atendente todos os pedidos sexuais: porque senão ela nunca aproveita. (risos)

Dançando nas Trevas

     Entendo agora perfeitamente por que alguns amigos se afastam da gente mesmo quando insistimos em evitar o abandono. O que custei entender eram casos em que de repente, quando já estávamos convencidos do esquecimento, a pessoa reaparecia em meio a névoa sorridente, assim, como se nada tivesse acontecido. Mas também foi possível somente agora assimilar boas razões que justificassem o que na maioria das vezes enxergamos como uma atitude falsa. Não, essa incoerência é só mais uma faceta da nossa vontade. Como quando comemos muito daquele prato favorito de tal forma que uma hora essa mesma refeição se torna repugnante. Como quando transamos demais com aquele corpo gostoso até não ser mais excitante, não ter cheiro, não ter sabor, tornando-se objeto. Como aquele filme que alcançou ser o melhor entre todos, mas impossível revelo novamente tão cedo. Como exatamente aquele perfume especial, encantador, indescritível, e de tanto usufruir, e de tanto tomar, e de tanto tingir, enfeitar e convencer o pescoço, torcer os olhares, criar palavras e encerrar noites, o cheiro agora só provoca náusea, estimulando fortes dores de cabeça. Rever algumas amizades às vezes é tão estranho como rever antigos amores, ora parecerá sublime, ora parecerá nojento. É quando a amizade se transforma em relacionamento, exigindo em algum momento tempo, silêncio, distância. Por mais que se tenha ingerido com exagero, a comida que era favorita um dia voltará a ser experimentada. Por mais que se tenha feito sexo por anos com a mesma pessoa, uma hora o desejo há de voltar, dependendo até mais forte e veemente. Vale para o perfume, que às vezes resiste próximo ao nosso espelho, preservando sua essência, quieto, aguardando a sua hora. Nossa melhor amizade só partiu por que enjoou do que fomos, aproveitou tanto do que oferecíamos até que ficamos fracos, até que ficamos pouco, até que ficamos frio, até que ficamos seco, até que ficamos simples, até que ficamos iguais, chatos e repetitivos e por isso somos deixados. Deixados como deixamos nossos antigos amores por muitos e vários motivos, nem sempre possíveis de serem explicados, já que dizer que só não comemos ou usamos mais algo por que cansamos do mesmo, não é tão simples quando no lugar da comida ou do objeto é alguém. Somos a tatuagem que demanda retoque. Somos a roupa mofada e fora de moda no fundo no armário. Somos um álbum de fotografias na memória, revisto, quando nunca, por acidente. Somos a joia antiga dada pelos avós, sem brilho, no escuro, mas em segurança na caixinha. Somos aquele lindo sapado guardado, no meio da pilha, a ser sorteado pelos dados da saudade. Éramos tolos porque contávamos com a sorte. Somos a lembrança e isso é o que mais importa. Se você também entendeu, agora dance, só dance.

Suco em Pó

     Os espaços virtuais até podem provocar evoluções relevantes às relações humanas, todavia, mata a realidade unilateral da qual vivíamos desde milênios. O que era sagrado foi corrompido pela forma dualista que a rede proporciona a antiga convivência pé no chão fortemente estruturada pela necessidade de sobrevivência. Mas sobre(viver) agora é relativo não quando questionamos como, mas onde. Onde? Se um dia desejávamos abraçar a vida, hoje por mais que tenhamos condições para isso, não teremos todas a evitar que ela (vida) escorra por entre nossos dedos contorcidos. A demência sadia é resultado desse esforço em se estabilizar no vácuo alcançado pela consciência fertilizada com as mídias de massa. O espaço geográfico (mecânico a esmagar nossos ossos e pele) por onde nossa "alma quase penada" vaga é incomensurável tal como nossa vontade de se auto preservar, manutenção do corpo e agora da mente para resistir o tempo e o pó, a expectativa de um futuro promissor que minimamente nos traga respostas ou fixe-nos nas nuvens que não conseguimos em nossos sonhos tocar. Nossas amizades, nossas famílias, se reinventando maquiagem sobre maquiagem ao passo de construir novas formas artificiais de subsistência, para se adequar em si ao mundo por prestígio, o que chamamos de vaidade, não ficando para trás. É necessário se drogar de bom senso e fazer "bonito", depois permitir que o tudo se perca como uma noite alucinante suficiente a causar histórias de vantagens, enredos das rodas de bar. Nosso compromisso com o outro é estável demais diante da vitrine lotada de opções gratuitas. Está muito fácil ser "feliz". Onde?

#todecacho

    Analisar os empreendimentos no capitalismo revela o que há por trás das máscaras do carisma publicitário, das novidades no mundo dos negócios, das inovações em produtos, da adequação de propagandas e do marketing específico para cada seguimento. O surgimento no mercado de determinados objetos essenciais, que praticamente parece absurdo antes nunca terem sido inventados, trata-se da exploração de um universo "racional" preconceituoso sendo humilhado, declinado, destruído pela evolução social que transcende paradigmas e cria novas tendências. Os novos e inúmeros produtos para cabelos cacheados à venda são exemplos da pouca diferenciação aos motivos pelos quais a escravidão foi abolida.

Intimidade

     Por que essa demora atual de nos casarmos? Depois, essa rapidez em assinar o divórcio? Haveria mais de uma resposta? Posso dizer que há dois anos dedico-me arduamente ao futebol de salão e antes desse esforço, considere que eu fosse um deficiente. Não tinha condição de se quer chutar uma bola parada, também não tinha passe, não tinha toque, não tinha drible. Sem velocidade, sem resistência, sem força, minha criatividade mancava pelas quadras fazendo jogo contra. Mas eu sempre amei futebol e nunca desanimei, nunca aceitei esta vergonha. Se é o que eu gosto, por que não me debruçar, não estudar, não aprender, me perguntei. Foi assim que larguei tudo, fui de graça em busca de uma felicidade banal. A troco de nada material, por vontade própria e sozinho, empenhei-me. Perdi alguns amigos, terminei um bom namoro, parei de estudar, troquei momentos em família por uma bola e mais 9 desconhecidos. Arrumei inúmeras confusões, fui espancado, fui intimidado, fui expulso, agi com violência, me machuquei, mas hoje tudo mudou. O casamento também é assim. No começo parece uma brincadeira gostosa, suave, descontraída, mas o tempo vai passando e as cobranças vão crescendo. O nível muda, as dificuldades aparecem, cercadas pelas exigências do amor. Como compreender e aceitar o que não imaginávamos antes das alianças? O casamento só é duradouro quando se vive por uma questão de prazer, de necessidade, de paixão. Parece difícil de prever se tudo terá um final feliz, se essa magia jamais acabará, se essa realidade não é no fundo um sonho que logo chegará ao seu fim. Os anos passam, brigas são esquecidas, discussões são evitadas, já antecipamos o comportamento do outro, os momentos sensíveis ao outro, os momentos decisivos ao outro, os momentos que exigem calma e os que exigem empoderamento contra o outro. Criamos habilidades dentro do relacionamento por não desistirmos. Observamos nossa companhia, nos especializamos em cada defeito, nos aperfeiçoamos em cada virtude. O domínio é preciso, o chute é certeiro, sempre em busca do melhor ângulo para jamais se arrepender. Entra-se em quadra com tudo planejado, sendo assim, livre de motivos para se estressar. Começamos e saímos satisfeitos, por que tocamos quando poderia tocar, damos a pancada porque o espaço estava livre, silenciamos quando nada mais deveria ser dito, discutirmos quando deveria discutir, gritamos quando foi preciso gritar e graças a essa intimidade é que conseguirmos terminar vitoriosos, recomeçando sem nunca mais perder. O casamento só deve continuar se for por dedicação, todos os dias são dias de treino, para que um dia finalmente tudo volte a ser brincadeira. Chegará o momento que nada mais abala, nada mais confunde. Já conhecemos e amamos tanto o outro que independente do que aconteça sempre será diversão, porque não existirá mais nada e ninguém capaz de competir.

Querer

      Podemos ser muito mais do que somos, sabemos disso. Podemos ser se quisermos, sabemos que só basta querer, ou ter a oportunidade. Queria além de tudo ser mais do que fui. Queria ter aberto os potes de conservas. Queria ter jogado o lixo lá fora. Queria ter trocado a lâmpada da cozinha e a resistência do chuveiro. Eu queria ter te amado mais, mais do que eu poderia. Mesmo que isso se configurasse a maior das humilhações. Eu queria. Eu queria ter sido mais escandaloso do que indiferente. Eu queria me arrepender rápido das grosserias e ser perdoado sem querer. Eu queria ter dividido as longas viagens pela estrada contigo. Ter tido mais paciência em explicar como se caminha, ter tido paciente de te ouvir dizer: eu já sei caminhar. Além disso, eu queria como queria abrir meu livro e encontrar um bilhetinho de papel rosado seu. Eu queria, em um jantar entre amigos, disputar para ver quem conta primeiro como nós nos conhecemos. Eu queria, voltando a mim, nunca ter abandonado a conversa, mesmo quando não tivesse mais nada a falar. Eu queria, voltando a você, que me corrigisse ao repetir a roupa na mesma semana. Eu queria ter conferido se a porta estava fechada mais vezes. Eu queria que tivesse me lembrado da cafeteira ligada. Eu queria ter comprado uma cafeteira. Isso que é foda. Eu queria. Eu ainda quero alguém que não se irrite com minhas sinceridades. Que não se fruste com meu amor apenas por reparar nas suas sobrancelhas borradas. Que arrume ingressos para um show de repente. Que me pergunte ao menos uma vez: o que vamos fazer final de semana? Eu queria que se importasse com meu cheiro e lamentasse sentir saudades de um dia, aflição de dois dias, paranoia de três dias, surto de dezesseis ligações e um bilhete de baixo da porta me amaldiçoando no caso praticamente de morte ou sequestro de uma semana. Eu queria que não largasse minha mão nem para coçar o rosto. Que me olhe paralisada em nirvana a me ver distraído. Que narrasse o seu dia, detalhadamente, mas claro, jogando videogame, sem me dar tapas pela apelação. Eu queria que tivesse pressa de mim, que entrasse em desespero, ao chegar em casa contando notícias. Eu queria ter chamado para dormir, dado um beijo para acordar e responder com o maior carinho que me dispor sobre o tempo lá fora, antes que se levantasse para vê-lo pela janela. Eu queria ter sorrido mais, mesmo que me saísse o perfeito palhaço, mas o palhaço dos seus eventos. Eu queria ter sido necessário. Podemos ser se quisermos, sabemos que só basta querer, ou ter a oportunidade.

O Inferno da Lua

      Existem peripécias na autoconfiança. Esse orgulho, como muitas vezes definido, não é apenas soberba, aliás, se o orgulho dependesse dela, não existiria. Vejo tudo como falta de interesse. Vejo tudo como uma questão de não precisar, só que, apesar de muito óbvio, nunca somos completos. Pode ser que trabalhemos ao máximo para isso, até de forma independente. A partir de então começa uma verdadeira luta conseguir acreditar em você mesmo, pior ainda se for pela própria auto-validação, uma vez que somos sozinhos, uma vez que somos carentes. Há até quem se socializa com este fim tão doloroso, em meio ao marasmo, tentar se identificar. Segundas intenções é inegavelmente muita humilhação, porque o coração tranquilo é a festa do acaso. Conheço pessoas que nunca tomaram conhecimento do seu ridículo. A maioria das vezes o problemas está dentro das ideias que temos sobre o eu. Ainda não existem remédios eficazes em apagar memórias, tratamentos para tornarmos autossuficientes, como em uma academia de musculação, meios práticos de fortalecer e definir nossa coragem. Emoções são extremamente particulares e intangíveis aos cuidados da mesma consciência. Mudanças e adaptações dependem de processos, alguns dramáticos, outros eufóricos. Uns se compreendem mais rápido, outros nunca conseguirão. De fato ainda não é possível simplesmente parar na calçada e dizer: calma! Espere ai, não me preocuparei mais com aquilo daqui por diante enquanto viver. Que bom seria ser orgulhoso por ser orgulhoso mesmo, sem esforço mental ou adquirido por experiências traumáticas. Um aplicativo para mente capaz de controlar nossas expectativas mais intransigentes. Como isso ainda não existe, todo o cuidado é pouco sobre o que achamos que somos e principalmente sobre o que achamos que não existe.

Ácido Mel

      Descobri que quando não queremos nos apaixonar nos apaixonamos. O cara não presta e seguimos em frente. Percebemos que ela é interesseira e nos fazemos de surdos. Contrariamos os próprios conceitos porque o amor é sacana. Contrariamos as crenças porque o amor é sacana. O amor abre até as portas deitadas. As vezes é assim que vencemos o jogo. Porque sei que é difícil, duro de suportar, mas o maior amor, o amor mais leal e puro, pode vir de um canalha arrependido.

A Última Lágrima

      Nas primeiras vezes fazemos escândalo, quando a mãe nos convida para almoçar e atravessamos a cidade para isso, mas ao chegar encontrar nada, ao chegar ter que comprar, ter que fazer ou comer o que foi feito as pressas. Nas primeiras vezes nos arrependemos, quando o amigo nos abandona bêbado, com toda a conta para pagar, com todo o ardor de voltar sozinho, com todo o álcool exalando na pele e a sensação de ter sido roubado. Nas primeiras vezes desanimamos, quando lembramos dos aniversários, quando organizamos a festa, quando nos dispomos a preparar o evento e no final também somos os que arrumamos toda a bagunça que surgiu, limpamos toda a sujeira que ficou, retocamos a pintura que manchou, secamos o chão ensopado, trocamos as luzes quebradas, consertamos os vidros rachados, comemoramos sozinhos um silencioso amanhecer. Nas primeiras vezes refletimos muito se seria verdade, quando nosso parceiro íntimo de trabalho de repente começa se ausentar, te sobrecarregando de serviços e depois você ser taxado de cagueta por denunciar o sofrimento. Nas primeiras vezes nos culpamos, quando o chefe no trabalho reclama da nossa produtividade, mas não se importa se talvez moramos a duas horas de distância do trabalho e o transporte não ajuda, se não temos roupas de frio e a temperatura não ajuda, se não temos um ótimo batom porque o salário não ajuda, se não recebemos vale já que a comida não ajuda, se já nos sentimos um lixo, ainda vem com as ameaças para "melhorar", esquecem do nosso sofrimento porque acreditam que ele pode ser pago a um valor mínimo, mas padrão. Nas primeiras vezes aceitamos a dúvida no lugar da confiança, quando o amigo nos convida para sua festa e levamos nossa companhia, mas durante a noite, lúcidos ou não, inúmeras vezes flagramos a acidiosa infidelidade nos distanciar. E como não comentar os encontros com os amigos, quando somos os primeiros e os únicos a chegar, pois para alguns ficar em silêncio é melhor do que admitir o fracasso. E como não comentar sobre aquele dinheiro, sagrado dinheiro que foi a muito tempo emprestado para alguém tão querido, e só por ser querido nunca mais nos devolveu. E como não comentar sobre aquela pessoa extrovertida, que se aproximou da nossa companhia e percebíamos que era faixada para persuadir, corrompendo à força nossa sexualidade. E como não comentar todas as promessas furadas, toda a saudade esquecida, todo o orgulho ferido, todos os arrependimentos em vão. Só assim é que juramos ser a última vez. Pagaremos a conta pela última vez. Aceitaremos o convite pela última vez. Beijaremos a boca pela última vez. Para o outro, organizaremos nossa agenda pela última vez. Pegaremos nas mãos pela última vez. Olharemos nos olhos pela última vez. A última vez que faremos nosso trabalho correto. A última vez que confiaremos nos outros. A última vez que gastaremos com alguém. A última vez que faremos algo que não seja por nós mesmos. Trata-se da hora em que já não pensamos em mais nenhuma saída. Será sempre a última vez. Até a última vez que respirarmos, sem a menor possibilidade de por desgosto chorar.

Toque de Família

     Dizem que família é em primeiro lugar e quando discordamos somos na maioria das vezes julgados como ingratos. Somos ameaçados em relação ao destino por mal dizer aqueles que um dia fizeram parte da nossa criação. As tragédias, os acidentes, as doenças e a velhice são os parâmetros da ponderação, do remorso, da culpa, do pânico que temos em detrimento a não consideração e ao desafeto familiar. Dizem que família é a certeza do cuidado, do resgate, do socorro. Dizem que deveríamos respeitar mais aquele que prezou por nós, valorizar quem nos viu nascer e crescer, é quem nos alimentou e quem nos alimentaria quando estivéssemos sozinhos e não mais conseguíssemos. Parece que o entendimento de família se resume na importância que seu papel "salvador" detém quanto aos momentos sorrateiros, que por sermos de sangue seremos sempre resgatados. Parece que família deve ser glorificada não tão diferente como glorificamos nossos deuses, já que estamos sempre sujeitos aos perigos que sozinhos jamais poderíamos superar. A família carrega essa esperança de guarda e acolhimento quando ninguém mais poderia oferecer. Mas é possível discordarmos. Mas é possível se emocionar com o que nem todos enxergam e assim entender que o significado de família é amplo demais para ser definido como algo tão genérico: família não é tudo. Não preciso ser parte da família de alguém para me preocupar com seu estado de saúde. Mesmo no leito de uma enfermaria, sem a supervisão de um familiar; mesmo ferido; mesmo doente; mesmo inválido, se a família lá não estiver alguém estará. O toque mais gentil do parente mais querido não é só quando o sangue jorra, mas principalmente no momento em que a lágrima cai. Não adianta alguém chorar sobre nosso corpo machucado, quando várias vezes nossa emoção sofreu e ninguém viu. Não adianta querer ajudar quando a notícia se espalhou, quando a desgraça aconteceu, quando os resultados estão prontos, quando o laudo foi feito, quando o prognóstico foi dado, quando estiver na maca uma prancheta informando o estado do paciente, quando as máquinas monitorarem o coração, quando os olhos já não abrirem, quando a boca não conseguir mais explicar. O toque gentil da família não existe quando for sempre nas salas de um hospital ou incapacitado na cama de um quarto. Quando no dia a dia somos abandonados na mesa do café. Quando no dia a dia somos esquecidos nos momentos mais sensíveis, mas cogitados nos horários dos bares e encontros anuais. Quando no dia a dia não reparam nosso esforço, não perdoam nossas falhas, não toleram nossa companhia, não apagam velhas mágoas, não esquecem antigos ressentimentos, não respeitam nossa privacidade, a troco de criticar até ofender. O toque mais gentil da família seria não ser apenas família, mas também melhores amigos.

Depois do Furacão

      Não se preocupe meu amor. Eu te amo tanto que duvido ser capaz de te fazer sofrer. De mim você jamais terá juras em vão. Não irei te fazer promessa falhas. Não trairei sua confiança. Não se preocupe, de verdade, pois não te darei motivos para suspeitar. Não esconderei nada sobre mim. Não a farei adivinhar, não a farei muito refletir, serei franco, serei honesto, serei verdadeiro. Eu serei tudo de bom para sua vida. Não me ausentarei, não desaparecerei, não pedirei licença. Permanecerei sempre ao seu dispor, porque jamais irei querer vê-la carente por algo que esteja ao meu alcance. Se eu virar meus olhos, não demorarei em retorná-los para você. Seu eu coçar o rosto, só com a outra mão, entretanto, se ela estiver ocupada resistirei à tentação, mas não te largarei. Estou cuidando de tudo, fazendo de tudo, pensando em tudo, quero evitar meus erros, quero evitar meus descuidos, quero evitar desalentos. Comigo será diferente, terei a responsabilidade de um astronauta, a resistência de um soldado, a espiritualidade de um funeral. Não me quero sentir tão lúcido ao seu lado, e também nem tão demente, para pedir desculpas e se sair como o coitado confuso. Parece estranho dizer isso, mas não posso correr o risco de me achar algo além de você. Nem á frente, nem atrás, desejo estar junto para nunca dizer que o problema não era você, mas sim eu. Que o problema seja nosso sempre. Para nunca dizer que não te mereço, você nunca será demais para mim. Que nossos limites sejam os limites dessa realidade impossível. Para nunca dizer que precisaremos apenas dar um tempo. Que a eternidade seja essa sim apenas o começo. Para nunca dizer que você ficará melhor sem mim. Que se sinta não só melhor, mas viva também e que a liberdade seja não só estar em seus braços, mas você em meus pensamentos. Não é que estarei agindo com ganância, apenas preocupando-se com as exigências de ser compatível. Para nunca dizer que só brigamos. Que as discussões sejam nossas brincadeiras. Para nunca precisar ficar só e tentar se encontrar. Fazer uma imersão espiritual e trabalhar a alma. Normalmente a rotina não para, por que no amor deveria? Sem essa de que o barco precisa voltar para o mar. Sem essa de que os pais não vão permitir. Sem essa de que se gostamos, mas só como amigos. Sem essa de que não é o momento de se relacionar. Sem essa de que sou a pessoa certa, na hora errada. Sem essa de não querer ferir meus sentimentos. Sem essa de não saber o que quer realmente, de ter espírito livre, de precisar fazer mudança, de precisar estar sozinha, de precisar viver novas experiências, ou que não nasceu para ter relacionamentos longos. Sem jogo sujo, de vir falar que encontrarei alguém que me ame de verdade. Amor verdadeiro a gente não encontra, amor verdadeiro a gente conquista, logo ali, depois do furacão.

Lágrimas do Absurdo

    Estive sozinho andando na rua noite passada. Caíram ao meu redor algumas pessoas, gritaram por socorro e eu não me mexia a favor. Embora eu não tivesse destino, parado fiquei diante a necessidade de ajudar. Não entendi o motivo da não reação, mas sei que acordo todas as manhãs certo que tenho educação. Certo de que tenho etiqueta e certo de que tenho postura. Acordo todas as manhãs convicto da minha humanidade e de que um dia serei ainda melhor. Acordo convicto de que a única coisa que me falta é poder para mudar ou fazer o que gostaria. Só que depois de falhar sobre minhas certezas, que é o que acontece na maioria das vezes, percebo que não sou o único a ter a indigência como problema e caiu na dúvida se realmente faria algo pelos outros. Percebo que isso não é exclusividade dos meus pensamentos, que não sou sozinho nessa miséria, que não tenho privilégios de se frustrar além dos demais. São inúmeras situações. Vejo gente desesperada se sujeitando a pedir dinheiro emprestado sem saber quando poderá devolver. Vejo gente sendo obrigada a sentar-se debaixo do sol, segurar uma placa de venda por 8 horas e receber como pagamento cem vezes menos que os donos do empreendimento. Vejo pais sendo informados de que a filha foi roubada sem ter a menor condição de repor o patrimônio e reaver o prejuízo psicológico causado a quem tanto prezam. O gari, que fazendo triatlo entre correr, levantar peso e respirar o cheiro intenso do chorume ter seu uniforme como fantasia de carnaval. Ir à feira de domingo, no momento do final, em que os preços caem, justamente porque as frutas que restaram não são da melhor qualidade, porém, ainda possível de se comer. Não ter como pagar a condução de procurar por emprego, imprimir um currículo, fazer um lanche nesse percurso e dormir mal pela dor de cabeça do cansaço. Envergonhar-se pela falta de uma bala, uma bala, que poderia adoçar o beijo que saiu sem hálito. Então, diminuir o estresse correndo no parque, uma vez não conseguindo se matricular na academia, mas sem poder dizer adeus com sofisticação, já que o medo da necessidade extingue qualquer soberba e o orgulho morre bem antes que a dignidade. A pobreza é uma doença que todos lutam para encontrar a cura; uns com violência, outros com conhecimento, até os preguiçosos se esforçam com a imaginação. Para ser alguém é preciso ter dinheiro. Está ai a grande dificuldade. É errôneo pensar que dinheiro não compra felicidade. O dinheiro é a felicidade que não subtraí as tristezas. Compra a saudade, compra a ausência. Compra o alívio das dores. Mata sem você sofrer. Compra as humilhações da família. Compra a lealdade do casamento. Compra o sigilo da sua insatisfação. Compra a atenção sincera dos amigos. O mundo também tem um preço e a tristeza sempre vai existir misturada entre as alegrias, independente do quanto você tiver para gastar.

Lado de Trás

    As pessoas vão adiando a hora de contar a verdade. Se apaixonam e terminam prisioneiras do seu próprio papel. O outro que também se apaixona, agora não sabe exatamente por quem se apaixonou. Somos compelidos a tentar provar que tudo o que fizemos, independente de ter sido farsa, foi resultado da soma de nossas partes. As justificativas são inúmeras para confundir ou para orientar, carro desembestado descendo ladeira a baixo. Como saber se não estão se aproveitando da nossa paixão outra vez? E mesmo quando descobrir, como rejeitar que por amor se faz de tudo? Perdoar ou não pelas mentiras, perdoar ou não pelas irresponsabilidades, perdoar ou não pelo esforço... É cair no conto do vigário ao ter o amor roubado na curva da alegria e pensar se aceita de volta do ladrão arrependido os cacos da realidade. As provas, as promessas e os lamentos formam vitaminas de ilusão para os momentos frágeis de separar o impossível. Separar o que se vê do que se sente, separar o que se pensa do que se diz. Difícil saber onde acaba e onde começa a representação do sentimento. Na real, nem mesmo nós sabemos quando estamos tristes de verdade, parece que é preciso uma hora ou outra ir se ver chorar em frente ao espelho para tomar consciência do sofrimento, ao mesmo tempo espectador da própria dor de sentir. O lado de trás do espelho é bem mais convincente. Respira aliviado não quem se arrependeu ou quem perdoou, mas quem entendeu todos os motivos.

Calabouço da Esperança

    Eu tentei. Fiz o que não deveria, revi meus conceitos, voltei, recomecei e agora estou aqui. Eu pedi desculpas, várias e derradeiras vezes não tive medo da vergonha mal encarada. A luz se apagou, mas não desisti de andar no escuro. O ar era pouco, mas não cai por respirar devagar. Falaram de mim, mas não me importei com o excesso de intimidade. Segui e sigo, apesar da violência eu mantenho o sorriso espontâneo, o humor repentino, a amizade sincera. Apesar do medo eu continuo convicto. Apesar das críticas eu não me ofendo. Apesar da solidão, improviso, não paro na mesmice de sofrer, quando a condenação natural sempre foi essa. Já é chato chora, já é chato correr, já é chato gritar, já é chato grunhir. Não há o que fazer, nem sobre o que pensar. São apenas dias normais, paredes iguais, pessoas ausentes. Mas apesar da realidade, eu não me abalo. Apesar das quedas, não permaneço no chão. Apesar da morte, vivo nas palavras. Não interessa se é ficção, não interessa se é demasia, apesar do esforço em subir, encontro-me cada vez mais lá no fundo. Apesar da esperança, estou cada vez ficando longe, cada vez regredindo mais magro, cada vez me tornando mais frio, cada vez me deitando mais triste, cada vez vivendo mais consciente Essa lucidez é entediante demais. Como dentro de um buraco, todos os dias é olhar para o mesmo muro. A carne é sempre carne, o corpo é sempre corpo, o mesmo gosto, o mesmo cheiro, os mesmos lábios, os mesmos olhos e as mesmas frases. Do outro lado da rua o mesmo bar, na frente os mesmos lanches, a pressa, permeada no tempo, escorre na pele sebosa do coitado sonhador. Quanto desespero e desgosto. Quanta verdade diária e inesgotável. Quanto amor desgraçado, que rendem boas histórias, mas nunca um final diferente.

Sensibilidade da Paixão

    Não sei se te amo ou se te odeio. Sei que nosso final não será feliz. Não pela rejeição do beijo, mas pelo abraço da vaidade. O que conforta é que final feliz com beijo é invenção, só serve pra tranquilizar todo mundo dando ideia de que os amantes não vão mais enfrentar obstáculos. Mas sem obstáculos o amor acaba, não há mais o que contar, acabou o romance. Mas quando não há beijo, não há morte, mas só rancor? Não tem saída? Eu acho que a saída é não desistir de procurar saída. Mesmo que ela não exista. Talvez as histórias de amor sirvam pra isso. Encorajar os casais a não desistirem de procurar uma saída. Pode ser. Mas e quando amor se torna ódio? É amor ainda? É saída ainda? Odiar alguém depois de amar não é planejar o beijo ou a morte como vingança, a vingança parece ser a briga que não acabou, a discussão que se mantém em silêncio, é odiar amar, é odiar continuar amando, é muita cabeça quente para pouco sangue frio, sendo só mais uma etapa do amor ressentido. Odiar alguém depois de amar não é perseguir, não é bloquear, não é se esconder, não é se expor. O drama é a esperança ocultada. O que se acredita ser ódio , assim, não passa de expectativas em excesso. Odiar alguém depois de amar não é desejar a queda, odiar já é comemorar sem perceber. Odiar não é desejar o mal, é festejar pela certeza que o mal acontecerá. Não te odeio , não te amo, estou apenas sofrendo.

Bege

    Por favor, não pense que é exagero ou engano. Acredite em mim. Não faço por mal, nem por orgulho, não faço pensado, nem retraído. Não brinco de amar, não coleciono paixões. Tudo o que falei para você foi por que acreditei que fosse verdade: acreditei em seu perfume diário, no resto dele em meu rosto. Acreditei em seu sorriso, na beleza dele pelas manhãs. Acreditei em seus convites, guardanapos do seu cheiro. Acreditei em seu olhar, na ingenuidade e ponderamento, observando meus erros com as lentes do perdão. Pensei que fosse possível alcançar seu corpo, misturar-se, fazendo da cor bege ícone da nossa paixão. Mas eu não me entreguei, não me convenci, não raciocinei, não desisti. Eu nem comecei, não vou terminar. Não sei o que fiz, não quero o que quero. Você me chamou e me iludiu. Agora não sei, nem quero saber. Só não olhe para mim como me olhava. Só não me peça como me pede. Só não seja romântica perto de mim. Não me castigue com sua simpatia. Quero que me olhe feio. Quero que me exclua da intimidade e me adicione na lembrança. Não é machismo, não é frustração, não é vergonha, não é desalento, é você, apenas você. Todos os dias ali, todos os dias a me explicar, a me ensinar, a me contradizer só com o olhar. Todos os dias ali, quieta, de poucos movimentos, de muita paciência, de fina educação. Todos os dias ali, procurada, desejada, consciente, decidida. Todos os dias ali, revolucionando, resolvendo, deduzindo, tolerando. Todos os dias ali, tocada, apreensiva, por isso indiferente. Pensa que estou jogando sujo, pensa que não faz sentido, pensa que não há propósito. Você está errada, mas também não vou te provar, você é independente demais para isso. Elimine minhas raízes, descarte minhas brincadeiras, ignore meu humor, envenene as esperanças, seja assim, mas não permita continuar como está. Não é revolta, não é desculpa, não é insensibilidade, é medo. Medo de me apaixonar em vão.

Brincadeira sem graça

   Na academia ela inventava a beleza do relacionamento: irem de bicicleta para adiantarem as pernas. Não era isso o fruto do desentendimento. Eu não poderia saber, falavam mais baixo que o coração. Não era o estilo deles levantar suspeitas. Quem me disse foram os desenhos da perna, para trocar com os braços. Nele um tribal sério, nela um céu desorganizado por pássaros. Se eu pudesse ao menos interrompê-los para dizer que ninguém é de ninguém. Se eu pudesse avisar que toda a alegria é a alegria de viver. Se eu pudesse, antes mesmo que um deles almejasse sair sem dizer tchau. O amor cuspiu em mim a verdade que a vida inteira procurei. Como doía meus olhos ver a dor de suas mãos. Trêmulas, já não tinha mais vontade de se unir. O peso era sobrenatural que seu corpo pudesse sustentar. Por isso ele parou como uma estátua em frente ao puxador. Agora detalhista, nunca tinha reparado que um lado da corda era menor. Nunca tinha reparado que o terceiro peso da máquina estava trincado. Sem palavras, sem reação, ela se foi. Sem ao menos dar tchau, abandonou a dieta. Abandonou a malhação. Quem há de negar que ambos queriam o melhor para si? Vai saber se não era ele quem mais exigia. Vai saber se não era ela quem mais se despreocupava. Sobre o amor, só posso adivinhar: fazem histórias e criam esperanças, comigo tudo é divertido como um jogo. O amor é assim, só estabelece interesse. Que seja bonita, que seja dedicado, que seja atenciosa, que seja carinhoso. O amor é assim, parece com a sorte. Mesmo que tudo esteja bem, mesmo que os veja hoje disputando a esteira, é sempre perigoso.

-mas só estamos brincando.

-toda brincadeira é um jogo.

Dupla Tragédia

   Por quê? A menina disse. Frente a falta de quem amava, não acreditava na novidade ainda ferrenha, ainda mais sofrível, ainda mais desgraçada e imparcial diante do seu amoroso estado de lamento. 

   Após a triste separação, fruto de um relacionamento conturbado, se ver ante a fatalidade de seu bichinho de estimação, sua única e provável companhia para as noites decorrentes, era cúmulo demais. 

   Era sua única explicação para se tranquilizar, sua única certeza, agora incerta como nunca. 

   As palavras de lamento, entaladas na garganta, se desfazem pelo ar. Ao chorar e chorar pela incompletude de seus sonhos, chorar e chorar pelo fracasso de seus planejamentos, e chorar, ainda sem vontade, pela vontade de se ver livre da alma culpada. Se ver livre da vida mundana que nunca se pretendeu que fizesse parte da sua estratégia de felicidade. 

   Por quê? Nem mesmo ele, meu simpático cãozinho, que culpa nada tinha, apenas necessidade de cuidados, não se livrou dos estilhaços do amor. 

   Ódio, o amor me despertou. 
   Ódio, o amor me fez sentir. 
   Amor, é de onde o ódio nasce. 
   Amor, é o início de qualquer frustração. 

   O que farei? Se ainda não confio no que vejo deitado em meu sofá. 
   O que farei, se esse é seu jeito de se acomodar? 
   O que farei se ainda estiver ai, apenas a compartilhar minha raiva de mim por mim que não tenho resposta de como aconteceu. De meu amor aos meus amores, de minha saudade a meu sofrimento, de minha magoa a minha falta de ar, de meus desejos a minha falta de coragem, de minhas poucas explicações, agora, a explicação alguma, de um por dois, de dois por eu, de mim por nada, de não querer me ver, de não querer me aceitar. Não querer, não quero, me dar chance. 

   Quero agora me responsabilizar. Quero me murmurar. Quero dar minha vida pela minha vida. Quero pagar com minhas falhas, pois outrora sai de casa com a cabeça quente, fora fiquei por uma semana para esquecer que existo e tentar voltar com uma solução às questões do meu passado. 

   No entanto, penso em como pude me distrair assim. Exijo uma satisfação de por que fiz isso, ou pelo menos fiz mas sem perder a atenção. 

   Por que abandonei quem não pode gritar?

   Acredito que chorou baixinho. 
   Acredito que uivo como uma criança geme.
   Acredito que se esforçou para latir ainda sufocado, ainda sem o que comer, ainda sem o que beber, ainda aguardando esperançoso por um milagre da porta se abrir involuntariamente, ainda aguardando que pelo menos sobreviva correndo a moda selvagem, instintiva, que fosse por um gato, que fosse por um rato, que fosse pela água da chuva, que fosse pelo capim do jardim. Nada aconteceu.

   Morreu pelo meu amor fracassado. 
   Morreu pelo ódio por ti. Pagou com a vida nosso equívoco. Pagou com a vida nossa saudade.    Pagou sem exigir troco e subiu aos céus por amor ao nosso ódio que um dia foi amor. Por que o amor é assim?

Indolor

     Pedir desculpa é muito mirim. Se arrepender é muito barato. Como é patético implorar por uma nova chance, se fazer de vitima, coisa de vira-lata. Só que deixar de fazer algo em busca do perdão sempre é mais grave, multiplica a vergonha no futuro. Não vejo outra saída. Se estiver errado desta vez, pelo menos errei me desculpando. Não vejo outra saída. Pedir desculpa por se desculpar. Desculpas por ter apenas isso a oferecer, diante de quem eu sou com você. Desculpa por estas palavras repetidas. Desculpa por essas lagrimas fora da validade. Desculpa por viciar sua paciência. Desculpa por de fazer feliz apenas agora, agora que eu te imploro por perdão. Desculpa mais uma vez. Desculpe-me pela última vez dessa que será a última. Desculpa por insistir, desculpa vai. Por ter medo, por não raciocinar num ritmo competitivo contigo, por ser inferior a você em ter me feito o bem, por ser superior a você em ter te feito o mal, por minha ingenuidade. Desculpa por não poder retribuir, mas desculpa por tentar, tentar com todas as minhas forças e ainda assim não conseguir. Desculpa se tenho vergonha de te pedir tantas desculpas, então me desculpa já que agora criei alguma coragem outra vez, entre tantas. Desculpe-me, por favor. Desculpe-me ao menos tente, como eu, ser o que não sou. Desculpe, até porque se fizer isso mais esta vez estará desculpando meu futuro promissor ao seu lado. Desculpe para que um dia eu faça o mesmo por você, sem ressentimentos. Desculpe-me para se desculpar, afinal, é para você o meu pedido e a minha oferta. É para você minhas desculpas, é tudo o que tenho e lhe dou como prova do meu amor cheio de remorso.

Todo Sentido

       Andando pela rua, um senhor, cego de um olho, passou de pressa ao meu lado montado numa bicicleta. Eu o percebi diretamente pelo lado em que ele não poderia me ver. Desviou-se de mim na velocidade, miserável feliz, e no segundo poste parou e disse: olá! Era para duas mulheres em situação de rua, provavelmente suas amigas. Resmungou da falta de água no córrego que costumava se banhar. Uma delas, sentada ao lado, indagou se a novidade era real, pois assim trataria de pensar numa alternativa, provavelmente lastimosa. As duas se debruçaram na questão, na tentativa de fugir do mau cheiro, dividiram o problema com a amizade. Foi ai que me olharam passar, talvez pensando por estimulo em pedir dinheiro, ou comida, talvez esperando um milagre, que não fosse meu: cair da moto do menino entregador de pão. Elas correram como quem já não comia há dias, servido o almoço, quente e na mesa. O menino parou logo mais a diante e avaliou o prejuízo, as ofendendo de mazelentas esfomeadas. Não é a primeira vez que o vejo vacilar na curva com a comida. Pilota de chinelo e com a segurança do veículo irregular. Já entregou pão a um vizinho do meu quintal. Esse, que trabalha vendendo milho cozido com manteiga em frente à estação, nunca o vi tirar folga. Todas as vezes que me vê reclama do teto úmido do seu quarto; penso se é o melhor que ele pode fazer. Por que temos dois olhos?

19 de abril de 2017

Vou com Você

        Alô. Por que desviou da relação? Por que preferiu mudar de caminho ao me enxergar lá na frente? Que experiência traumática viveu para optar pela mão da saudade? Foi a primeira saída, via de fácil acesso, de poucos percalços, tão lisa, tão reta, tão longa, margens para outras opções? Porque a curva do meu amor parecia tão acentuada assim? Seria risco de acidente tentar nessa paixão? Você nem pensou em reduzir a velocidade, você nem ponderou pelo prazer da viajem, houve receio de mais uma aventura sinistra. O trajeto de emoções, mapa da minha vontade, você nem procurou conhecer. Senti que seriam úteis seus concelhos, mesmo quando de ponta cabeça, auxílio que não tive. Sumiço no sonho, não vejo mais sua paciência, critérios do seu prazer, para que lado virou sua voz cada vez mais distante, engolida pelo túnel do tempo? Por que não seguiu, mas pegou o retorno? Por que não contorna e volta para mim? Pegue-me na esquina, segure minha mão, dê-me carona, adoraria navegar em seus cabelos. Mas não assim, fugir por que? Pensou que seria muito arriscado? Imaginou grandes perigos na tortuosidade dos meus toques de carinho? Preferiu esquivar por achar minha ousadia uma ameaça? Escolheu fugir por pensar ser grave demais amar novamente. Não ser como sempre desejou, mas breve demais, ou áspero demais, ou apagado demais, ou declinado, ou íngreme, ou úmido, ou seco, ou duro, ou mole, ou agudo, ou frágil, quente ou frio, jamais ideal. Você virou a esquerda, evitando a contramão. Você, assim que pode, dobrou na mais próxima e foi, sem olhar pro futuro. Foi, e não convidado, apenas olhei você partir.

Pagar para não fazer

Não nascemos prontos. Precisamos aprender, nos adaptar, e o processo de aperfeiçoamento percorre por toda a vida.

Não somos como os animais. A tartaruga que sai do ovo pronta para nadar. O bezerro que anda minutos após seu nascimento.

Necessitamos de conhecimento para seguir. Só que o que me impressiona é descobrir que quase sempre o conhecimento não é nosso.

Há um médico para nos tratar. Há um professor para nos ensinar. Há um nutricionista que explica nossa dieta. Há um pai e uma mãe que nos educa. Há sempre um ditador que nos orienta, ou nos impulsiona, ou nos escraviza, ou nos sustenta, ou nos oferece milagres.

Obras como Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes, Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, Como Evitar Preocupações e Começar a Viver, Como Falar em Público e Encarar as Pessoas etc.. são exemplos dessa criatividade que é a autoajuda.

Uma tirania moderna, que além de nos impor, nos cobra pela opressão. As Dez Leis para Ser Feliz tem um custo e um número de regras que não são nossas, mas de alguém que nos determina.

É incrível. Não basta exercer sobre nós o poder, somos obrigados além de tudo a pagar por isso. O que significa que pagamos pela derrota de por si só não conseguir ser feliz.

A autoajuda é assim, fórmulas que servem para qualquer um , em qualquer caso. Aí de você então se preferir a partir de agora caminhar com as próprias pernas. Além da enorme angústia que é conhecer a vida e a própria, sempre haverá um tirano incomodado com sua autonomia.

Agora se não quiser também, o jeito mais fácil é enganar, inclusive tudo facilita para isso. A cola na hora da prova, as regras do chefe no emprego, as exigências da família. Fazer o que tem que fazer e está tudo pronto. Para quem não quer pensar tem tudo acabado, basta ter condições de pagar por tudo isso, com dinheiro, com o corpo, com a alma, tudo tem seu valor.

A Liberdade do Mundo

      Que mundo é esse? Mundo grande, tão pequeno. Trabalho com tempo para tudo, o de chegar, o de sair, de comer, de descansar. Mas olha o mundo! Que mundo é esse? Mundo vem, mundo vai, o céu, que é sem teto. Sem fim das horas, quando é dia cai logo é noite, mas a noite sai assim é dia. Retomo meus erros como vulcões as larvas. Faço bobagem como furacão em fúria faz barulho. Minha natureza tem limites de ir, de voltar, sempre na linha do meu medo. Esgotei minha coragem. Está aqui meu susto olhando o mundo que não cabe, nem ele no meu que é tão vasto quanto o fim incerto mas esperado. Não sei quando chega nem como chegará. Mas o mundo está lá, povoado como o nosso que é mundo sozinho, estando lá não se sabe só se imagina o vai e vem de nascer ou de morrer. Mundo brilha, mundo apaga. Imenso mundo espacial, na galáxia inexorável à areia vermelha da praia. Lindas águas negras de um oceano raso tem um mundo. As folhas podem ser azuis, o mel pode ser rosa. Tanto faz. Estranho limbo, esse universo quieto de estrelas mudas. Separadas, fazem o vão entre outras, paralelas que nos cruzam em alguma medida na observação atenta da saudade. Mundo vai, vai se estender e crescer por esse universo. Encontrar o seu limite. Explorar sua essência. Descobrir seu amor. Aproveitar a liberdade da solidão, exemplar nas estrelas cadentes. Vaga mundo, moribundo como os asteroides. Então mundo, revele quem é você nessa escuridão, sua coragem lúdica em vagar sozinho e elegante, vestido com a névoa do próprio exílio. Cuide-se mundo, preciso voltar ao meu que fica em algum canto do seu.

Branca

       Depois de tanto tempo, é um alivio acordar e rever seu chinelinho esquecido no chão do meu quarto. Após tantas desavenças, como acreditar que foi possível te ver despertar como se o passado não existisse? Com tanta morte, é inacreditável ver renascer o beijo dado como falecido. O despertador travou na hora do óbito, e agora alerta com ansiedade todos os dias minutos antes de dormir. Mas hoje não. Não porque não há barulho, não há silêncio, não há vão. A hora parou a partir do instante em que te vi e dessa vez o tempo foi quem morreu. Só que assim como numa noite ressuscitamos, o tempo agora cedo continua. Novidades mais virão, acelerar ou atenuar nossos movimentos. Mas não posso negar que ainda te amo apesar de tantos desastres, me sinto pálido como se branca estivesse a superfície do meu coração. Idas e voltas, quedas e pulos, a gravidade é outra. Um espaço sentimental que perdeu a pureza de um amor rico em nutrientes da paixão, ficando o vácuo que a saudade insiste preencher. Mesmo agora, que não temos só as pequenas diferenças, mas todas elas, entre propósitos e conquistas, entre querer e poder, na luta diária por conforto e sucesso, seguimos não só crenças distintas, mas além do que poderia piorar, traçamos caminhos opostos. Mesmo com tudo isso, aqui estão seus objetos mais uma vez, resistindo com o tempo a dura prova da separação. O que não seria difícil? Mas mesmo assim, não confio na envergadura de um final. Sua forma presunçosa e onipotente é dramática demais para a intimidade de nós dois.

Cenas de um Casamento

     As cenas de um casamento são as cenas da barbaridade criadas pelas expectativas individuais dentro do relacionamento. Inicialmente, são episódios que retratam alegrias, transitivas à paulatina infelicidade. A princípio em momentos de aparente bem estar, evoluem para o inevitável declínio da relação. Depositamos a crença e segurança no que construímos até aqui: a fé que surge após anos de convivência. As aparências se mantêm com pequenos - porém sucessivos - desentendimentos. Mas o trama tende a explodir quando o encantamento some, o interesse esvai e as exigências deixam de ser atendidas. Em meio ao transtorno, somos quase incapazes de dissecar o doloroso processo de separação e de se convencer que o que era “ideal” no fundo tratava-se de uma ilusão. Não se tem de maneira seca e sutil o empoderamento de raciocinar sobre os erros da esperança, para além da tentativa egoísta de resgatar o que se foi ou recriar o que se queria. O resultado incomoda, mas é absurdamente belo, tudo por se tratar de uma vontade humana que nos submetemos e que de alguma forma somos obrigados sobressair à compensação de não sofrer. Em diálogos agressivos, nos deixamos aflorar os mais ocultos ressentimentos e amarguras; tudo em plena sintonia com a média natureza psicológica de um moderno convívio líquido, oposto às facetas patriarcais da condição humana.

Ex Pai


Sou pai de um filho que não é meu. 

Sou pai de brincadeira. Sou pai na foto não tirada. Sou pai nas aparências. Sou pai nas lembranças. Sou o pai em meus sonhos. 

Sou o pai que não ouvirá choros, que não trocará fraldas, que não levará ao pediatra e que não comprará a primeira bicicleta.

Sou o pai sem herdeiro. Sou o pai sem 13 de agosto. Sou o pai sem massagem nas costas. Sou pai do filho de outro pai.

Sou na verdade um ex pai, porque ex é alguém que teve as suas chances e ou não aproveitou, ou não foi aproveitado. 

Sou ex por que ex é quem chegou perto, mas não agarrou. Chegou próximo, mas não ficou. Chegou ao lado, mas não a frente. 

Sou ex por que ex é quem um dia teve tudo e agora não tem nada. Ex é a história que acabou antes de começar. 

Aquele que verá a oportunidade perdida nascer. Aquele que viverá com a memória do paterno fracasso.

Ex pai é como ex namoro, a gente nunca esquece. Pensamos como as coisas seriam se tudo jamais tivesse acabado.

Resta mesmo sempre pensar como seria se aquela criança fosse minha filha. 

Resta sempre pensar se não seria melhor perdoar ao invés de brigar. 

Resta sempre pensar se não seria melhor ter deixado por você a ter tirado pelo outro.