19 de abril de 2017

Branca

       Depois de tanto tempo, é um alivio acordar e rever seu chinelinho esquecido no chão do meu quarto. Após tantas desavenças, como acreditar que foi possível te ver despertar como se o passado não existisse? Com tanta morte, é inacreditável ver renascer o beijo dado como falecido. O despertador travou na hora do óbito, e agora alerta com ansiedade todos os dias minutos antes de dormir. Mas hoje não. Não porque não há barulho, não há silêncio, não há vão. A hora parou a partir do instante em que te vi e dessa vez o tempo foi quem morreu. Só que assim como numa noite ressuscitamos, o tempo agora cedo continua. Novidades mais virão, acelerar ou atenuar nossos movimentos. Mas não posso negar que ainda te amo apesar de tantos desastres, me sinto pálido como se branca estivesse a superfície do meu coração. Idas e voltas, quedas e pulos, a gravidade é outra. Um espaço sentimental que perdeu a pureza de um amor rico em nutrientes da paixão, ficando o vácuo que a saudade insiste preencher. Mesmo agora, que não temos só as pequenas diferenças, mas todas elas, entre propósitos e conquistas, entre querer e poder, na luta diária por conforto e sucesso, seguimos não só crenças distintas, mas além do que poderia piorar, traçamos caminhos opostos. Mesmo com tudo isso, aqui estão seus objetos mais uma vez, resistindo com o tempo a dura prova da separação. O que não seria difícil? Mas mesmo assim, não confio na envergadura de um final. Sua forma presunçosa e onipotente é dramática demais para a intimidade de nós dois.